19 abril, 2008

conversa de grego

Num dia nublado e abafado, na bucólica Éfeso, terra do misantrópico e melancólico Heráclito, Parmênides tentava dissuadir uma pequena roda de ouvintes, que num momento anterior estivera atenta à oratória de seu mais enfático opositor, quando foi surpreendido pela voz grave e contumaz daquele que o antecedera naquele espaço: Heráclito.

- Ora, se não muito me engano, mas o próprio ser, destituido do nada, veio contrapor argumentos para além da trincheira fronteiriça. Muita ousadia, nobre cavalheiro.

Esse cumprimento amigável e acolhedor desenrolou-se numa recheada discussão, que ecoou pelos quatro cantos da velha Grécia e até hoje ouve-se versões para aquele curto e acirrado bate-boca cosmológico.

- Meu caro Heráclito, ouça-me com atenção. Não posso deixar que sua visão deturpada da realidade comprometa o entendimento dessa gente, sobre o princípio das coisas. Veja, o ser é positivo puro e o não ser, o negativo puro. Contrários absolutos e excludentes. Tudo aquilo que alguém pensa e diz é. Pensar o nada significa não pensar e dizer o nada significa não dizer. Portanto o nada é impensável e indizível. Pensar e ser coincidem.

- Tudo se move, filho de Eléia. Tudo muda e transmuta. O devir caracteriza-se como harmonia dos contrários.
O ser é tão pouco como o não-ser; o devir é e também não é; o mel é doce e amargo.

- Eis onde você, meu caro, tropeça. Façamos um princípio de não contradição. Os contrários não podem coexistir. Suponha o ser. Ele é incriado, visto que, se criado, resultaria de um não ser, o que seria absurdo. O nada não origina, portanto o ser já é, sempre foi e sempre será o ser.

- Assim você confunde sua própria razão de pensamento, dileto Parmênides. Tudo está relacionado. As coisas caracterizam-se por uma contínua passagem de um contrário a outro. Veja o rio, ele é o mesmo, mas sempre outro, por isso não há homem que se banhe duas vezes no mesmo rio. Ele, o homem, também já terá mudado.

- Confusão crias tu, com essa mania contundente de fazer apologia ao devir. Isso que atribuis como algo novo, não passa de aparência que teus olhos criam. O caminho para verdade é o pensamento, onde a essência permanece. A essência precede a existência.

- Parmênides, direi uma última coisa: o dinamismo é a essência do princípio que gera, sustenta e absorve todas as coisas. Por isso somos e não somos, pois para sermos o que agora somos, devemos não ser o que éramos no momento anterior, ou seja, para continuarmos a ser devemos não ser aquilo que somos em cada momento.

- Ora, ora. Fiquemos por aqui. Não delonguemos o que não terá fim, posto que é e sempre será assim, mesmo que preenchido de oponências.

- Então.


Heráclito nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, 540 - 470 a.C. aproximadamente. Considerado um dos mais importantes filósofos pré-socráticos, é a ele atribuída a primeira referência teórica sobre a dialética. Parmênides nasceu em Eléia, hoje Vélia, Itália (530 - 460 a.C.) foi fundador da escola eleática. Considerado o pai da ontologia, quando sustenta a tese de que o ser é imutável, eterno, não-gerado e uno. Filósofos de teorias contrárias, nunca estabeleceram um diálogo (até onde se sabe) como sugerido acima, mas são as suas ideias as que mais influenciaram pensadores de todos os tempo.

17 abril, 2008

sobre a verdade

Se o conhecimento está relacionado a interesses e pode ser manipulado, podemos afirmar a existência da verdade?

Confirmar ou negar a existência da verdade depende, inicialmente, da perspectiva utilizada para reconhecer o que se estabeleceu como verdadeiro. É pertinente compreender que a verdade possui alguns atributos que podem, independente de relativismo, fazê-la transitar entre lados que, ora correspondam ao que conhecemos como verdadeiro, ora não. Dentre os atributos sugeridos está a historicidade da verdade, o referencial utilizado, a interpretação dada, o reconhecimento da utilidade e funcionalidade desse conhecimento, entre outros.

O interesse surge, em última análise, como norteador do que se afirma ser verdade, vale pensar que se trata de interesses orientados histórica e culturalmente. Mas se o conhecimento é dado a partir de interesses pessoais e coletivos, variando de acordo com o status dos que compõem a sociedade, está ligado ao modo como é reconhecida a realidade e, sobretudo, como esta é traduzida e transmitida através da linguagem.

Dessa forma, a pergunta inicial se desvela em pontos que podem se opor, determinando certo cuidado ou contextualização para afirmar ‘sim’ ou ‘não’ como resposta. Pontuando:

1. Reconhecer a realidade como verdadeira pressupõe um conhecimento válido, possível e confiável; tal conhecimento é produzido e difundido através da cultura pela linguagem e afirma o poder de quem o detém, portanto, motivado por razões particulares e convenientes, não sendo, desta forma, neutro, nem absoluto;

2. O interesse em descobrir, explorar a natureza, sejam quais forem as justificativas utilizadas, geram conhecimentos que servem de base para outros, que podem influenciar a percepção da compreensão da realidade, admitindo pré-conceitos, que nos levam a repetir um conhecimento sem questioná-lo, portanto, dado à falácia;

3. O comportamento humano é orientado pela forma como conhecemos e procuramos estabelecê-lo de um modo que pareça imparcial e objetivo, visto que há uma tendência em manter um cenário social, político e cultural estável. Nesse caso, o conhecimento pode ser aplicado como forma de controle e dominação. Assim, é conveniente caracterizá-lo, nesse âmbito, como detentor de uma verdade imparcial, objetiva e única. Ou seja, dogmatiza-se o conhecimento em função do controle das massas;

4. Contudo, me parece impensável, ao menos num primeiro momento, questionar, invariável e constantemente, o que é dado como verdade. As relações humanas necessitam de certa estabilidade, que acaba sendo fruto e frutificando a dogmatização do conhecimento, ficando a cargo de poucos a inquirição persistente sobre se é verdade o que de verdade nos é posto. Certamente, é por esta razão que afirmamos ser o conhecimento um instrumento de manipulação, que, entre outras coisas, reforça a naturalização da realidade concebida.

Conhecimento é poder porque condiciona a verdade. Não há, portanto, "a verdade", há possibilidades de se identificar, dentro de uma perspectiva, num dado momento histórico, aspectos que favoreçam a compreensão de fatos e fenômenos como detentores de conceitos inquestionáveis, mesmo que provisoriamente. A verdade, quando colocada como absoluta, reflete mecanismo de controle, e, mesmo na nossa sociedade, imersa em dogmas, aprisionada em uma caverna, pode e deve ser questionada e propor a dúvida do que é dado como pronto. Afinal, foi a partir dessa característica especulativa e curiosa, questionando o visível, pra compreender o que está além dele, que foi possível chegar à infinidade e complexidade do conhecimento acumulado pelo homem.